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cirrose hepática e suas complicações mais frequentes, como a ascite, a encefalopatia, a hipertensão portal com hemorragia digestiva e o hepatocarcinoma são temas quentes que caem todos os anos. Sim, sabemos que é um assunto muito amplo, mas a gente está aqui para simplificar as coisas. Apesar de toda sua complexidade, os tópicos abordados costumam ser sempre os mesmos, com poucas variações. Vamos revê-los?

O que é Cirrose Hepática?

Para começar, é importante relembrar que a cirrose hepática é o estágio final de todas as agressões crônicas aos hepatócitos. Sim, independente da causa, a perda da arquitetura normal com formação dos nódulos de regeneração vai levar à hipertensão portal e à diminuição de todas as funções metabólicas do fígado.  

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Causas da Cirrose Hepática

As causas mais comuns classicamente são o abuso de álcool e as hepatites virais C e B, mas há uma outra que está aumentando bastante e que é bom você ficar de olho: a doença hepática gordurosa não-alcoólica. Além delas, doenças metabólicas, autoimunes e obstrução biliar crônica podem levar à cirrose.

Como abordar um paciente com Cirrose Hepática?

No começo, o paciente é totalmente assintomático, é a fase compensada, até que aparecem icterícia, ascite, encefalopatia ou hemorragia, como sinal de descompensação, e o paciente acaba mais cedo ou mais tarde evoluindo a óbito ou é transplantado. As classificações mais utilizadas nos pacientes com cirrose são a de Child-Pugh e o MELD (sigla para Model for End-stage Liver Disease), e vale a pena você memorizar, porque caem muito nas provas! O Child Pugh costuma ser usado na avaliação ambulatorial e separa os pacientes em compensados (A), com grave comprometimento (B) e descompensados (C). Já o cálculo do MELD (calma, não precisa fazer a conta, não!) é utilizado para priorização dos pacientes na lista de transplante hepático.

Classificação funcional de Child-Pugh

  • 6 pontos – Child A, bem compensados
  • 7 a 9 pontos – Child B, comprometimento funcional importante
  • 10 a 15 pontos – Child C, descompensados

Cálculo do MELD (Model for End-Stage Liver Disease)

Variáveis: Bilirrubina, creatinina, INR e etiologia

Fórmula

3,8 x loge (BT mg/dL) + 11,2 x loge (INR) + 9,6 x loge (Cr mg/dL) + 6,6 x (etiologia: 0 se biliar ou alcoólica, 1 se outras)

Além dos exames de sangue necessários para calcular os scores, investigar a etiologia e fazer a avaliação clínica geral, devemos solicitar ultrassonografia com Doppler, endoscopia digestiva alta, alfa-fetoproteína (marcador de hepatocarcinoma) para pesquisa de complicações, e um FibroScan (exame de imagem que simula a biópsia hepática) nos pacientes com cirrose hepática. É importante encaminhar a um serviço de hepatologia ou de transplante hepático.

Complicações da Cirrose Hepática

Uma das complicações da cirrose hepática mais cobradas em concurso é a ascite. Ela é o acúmulo de líquido semelhante ao plasma ou diluído na cavidade peritoneal.  

Quando encontramos um paciente com ascite, precisamos saber primeiro a sua causa, já que, apesar da cirrose hepática ser a mais comum (80% dos casos), outras doenças podem levar à ascite, como a tuberculose, a carcinomatose peritoneal e insuficiência cardíaca, só para ficar nas mais comuns. É indicada a paracentese diagnóstica, para avaliação bioquímica, celular e microbiológica, a fim de acharmos a etiologia e pesquisar eventuais complicações.  

Um dos dados mais importantes que podemos ter é o gradiente de albumina soroascite (GASA), calculado pela subtração do valor da albumina do líquido ascítico da albumina sérica. Se ele for maior ou igual a 1,1, há 97% de chance da ascite ser decorrente de hipertensão portal.  

Exemplos de causas de ascite com base no GASA

Tratamento da Ascite

O tratamento inicial da ascite no cirrótico envolve um cuidadoso balanço negativo de sódio, com diminuição da ingesta e uso de diuréticos. O de escolha é a espironolactona associada ou não à furosemida. Apenas em casos de ascite muito tensa, com desconforto respiratório, recorremos à paracenteses de alívio, lembrando de fazer sempre a reposição de albumina endovenosa, se for retirado mais que 5 litros, na porção de oito gramas para cada litro. O tratamento da ascite melhora muito a qualidade de vida, mas não diminui a mortalidade.

Uma complicação da ascite no cirrótico é a peritonite bacterina espontânea (PBE). Ocorre infecção do líquido peritoneal com baixo teor de proteínas (risco abaixo de 1,5 g/mL) por uma única espécie de bactéria intestinal. Como a cultura nem sempre é positiva e pode demorar, para o diagnóstico e tratamento, basta o achado de mais de 250 polimorfonucleares/mm3 no líquido ascítico.  

Deve-se iniciar cefalosporina de terceira geração endovenosa e ao menos nos pacientes com risco de disfunção renal, associar albumina, 1,5/kg no 1º dia e 1g/kg no terceiro. Em caso de resposta duvidosa ou suspeita de peritonite secundária (sim, cirróticos com ascite podem ter diverticulite, por exemplo), repetimos a paracentese em 48h. Pacientes com alto risco de PBE, com HDA, ou qualquer descompensação aguda da cirrose com ascite devem receber profilaxia para PBE (norfloxacina ou ciprofloxacina 1 vez/dia).

O que é Encefalopatia Hepática?

Pacientes com cirrose hepática com hipertensão portal que apresentam shunts (derivações) portossistêmicas podem ter uma disfunção encefálica sem outra alteração funcional ou lesão orgânica.  

Os fatores desencadeantes são desidratação, constipação, infecções ou complicações mais graves, como a HDA e o hepatocarcinoma. Clinicamente o paciente apresenta uma série de disfunções neurológicas, que podem ser mais pronunciados quanto maior for o estágio da encefalopatia e chegar até o coma (veja a classificação de West Haven).  

Os achados mais específicos ao exame físico são o adejo (asterixe ou flapping) e o hálito hepático.

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Classificação de West Haven

O tratamento se baseia em tratar ou afastar os fatores desencadeantes, acidificar o meio intestinal e acelerar seu trânsito com Lactulona, evitar alimentos com aminoácidos aromáticos (carne vermelha), mantendo um bom aporte nutricional proteico e de hidratação. Raramente são necessárias drogas específicas, como o flumazenil e a bromocriptina.

Como prevenir e tratar a hemorragia digestiva no cirrótico?

A hipertensão portal pode levar à formação de varizes gastroesofágicas ou à gastropatia hipertensiva, cursando com hemorragia digestiva alta, complicação relativamente frequente e a mais letal da cirrose hepática.

Mesmo antes do sangramento ocorrer, depois da avaliação funcional e da endoscopia digestiva, devemos iniciar a prevenção primária nos cirróticos com varizes pequenas com sinais vermelhos (alto risco de sangramento); varizes médias ou grandes independentemente da classificação de Child-Pugh; ou varizes pequenas em pacientes Child-Pugh C. Usamos beta-bloqueadores não seletivos e ligadura elástica endoscópica. Mas, atenção: isso é só nos pacientes estáveis! Na hemorragia aguda, nos pacientes hipotensos ou com ascite descompensada, os betabloqueadores são totalmente contraindicados! Muita gente cai nessa pegadinha na prova.

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Na hemorragia digestiva alta varicosa, o tratamento é similar ao da hemorragia não-varicosa, exceto por duas coisas: o uso dos análogos da somatostatina e de antibióticos. O paciente recebe as medidas de reanimação e monitoração iniciais, com oxigênio, acesso venoso, coleta de exames, inibidor de bomba de prótons e reposição volêmica cuidadosa, sendo depois encaminhado para a endoscopia de urgência. Veja a Figura a seguir:

Figura – Algoritmo de conduta na HDA varicosa.

Como diagnosticar e tratar o hepatocarcinoma no cirrótico?

Independente da causa, todo paciente cirrótico tem risco aumentado de hepatocarcinoma. Os nódulos de regeneração podem apresentar displasia e degeneração maligna. Por isso, é indicado o rastreamento de todos os pacientes com ultrassom a cada seis meses associado à dosagem de alfa-fetoproteína. Nos casos suspeitos, uma tomografia multifásica ou ressonância com contaste hepatoespecífico podem confirmar o diagnóstico. A biópsia raramente é necessária no cirrótico.

Feito o diagnóstico, os tratamentos com intenção curativa são a ressecção (só em casos localizados e pacientes compensados sem hipertensão portal) e o transplante, para os pacientes que preencham os critérios de Milão (Mazzaferro), nódulo único de até 5 cm ou até 3 nódulos de, no máximo 3 cm. Podem ser tentados a ablação por radiofrequência e a quimioembolização, como métodos intermediários.  

Pronto! Agora você viu que a cirrose hepática não é nenhum bicho de sete cabeças. E na live de Revisão para prova de Residência Médica, eu explico melhor todos esses conceitos. Para saber mais, dê o play e confira!


Por José Américo Bacchi Hora
Médico formado pela Universidade Federal de Pernambuco (1999), fez Residência em Cirurgia Geral no HCFMUSP e Residência em Cirurgia do Aparelho Digestivo no HCFMUSP. É Preceptor das Disciplinas de Cirurgia do Aparelho Digestivo e Coloproctologia do HCFMUSP, membro titular e especialista do Colégio Brasileiro de Cirurgia Digestiva. Doutorando em Ciências em Gastroenterologia na FMUSP e professor de Gastroenterologia e Cirurgia da Medcel desde 2005.

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REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. PORTARIA Nº 602, DE 26 DE JUNHO DE 2012. Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas do Câncer de Fígado no Adulto. https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/protocolos-clinicos-e-diretrizes-terapeuticas-pcdt/arquivos/2012/cancer-de-figado-no-adulto-diretrizes-diagnosticas-e-terapeuticas.pdf/view  

EUROPEAN ASSOCIATION FOR THE STUDY OF THE LIVER. EASL Clinical Practice Guidelines for the management of patients with decompensated cirrhosis. Journal of hepatology, [s. l.], v. 69, n. 2, 2018. Disponível em: https://www.journal-of-hepatology.eu/article/S0168-8278(18)31966-4/fulltext. Acesso em: 10 mar. 2023.  

EUROPEAN ASSOCIATION FOR THE STUDY OF THE LIVER. EASL Clinical Practice Guidelines on the management of hepatic encephalopathy. Journal of hepatology, [s. l.], v. 77, n. 3, 2022. Disponível em: https://www.journal-of-hepatology.eu/article/S0168-8278(22)00346-4/fulltext. Acesso em: 10 mar. 2023.  

EUROPEAN ASSOCIATION FOR THE STUDY OF THE LIVER. EASL Clinical Practice Guidelines: Management of hepatocellular carcinoma. Journal of hepatology, [s. l.], v. 69, n. 1, 2022. Disponível em: https://www.journal-of-hepatology.eu/article/S0168-8278(18)30215-0/fulltext. Acesso em: 10 mar. 2023.  

AITHAL, GP; MOORE, KP. Guidelines on the management of ascites in cirrhosis. Gut, [s. l.], v. 55, 2006. Disponível em: https://gut.bmj.com/content/55/suppl_6/vi1. Acesso em: 10 mar. 2023.

MARRERO, Jorge A. et al. Diagnosis, Staging, and Management of Hepatocellular Carcinoma: 2018 Practice Guidance by the American Association for the Study of Liver Diseases. Hepatology, [s. l.], v. 68, n. 2, 2018. Disponível em: https://aasldpubs.onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/hep.29913. Acesso em: 10 mar. 2023.

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10/3/23
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