Você já fez uso, ou conhece algum colega de faculdade ou profissão, que faz uso de psicoestimulantes para estudar? Internato da faculdade, início da vida profissional, provas logo adiante, saída de casa… A vida nos oferece períodos em que o turbilhão de informações é tão grande que ficamos em dúvida se conseguimos dar conta de lidar com tudo o que está acontecendo.  

Normalmente, é nesse contexto de excesso de demandas, combinado com alguma dificuldade de produtividade, estresse e fadiga, que podem surgir dúvidas como “será que isso é normal?", “será que não há algum problema comigo, já que não estou correspondendo ao que eu gostaria?”. Some essas dúvidas a um mundo de redes sociais, em que todos parecem felizes e realizados o tempo inteiro, seja aqui, seja nas Maldivas, e está formado o “caldo de cultura para o estresse”. Além do burnout, condição já descrita por nós aqui, o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) parece ser o “fenômeno da vez”.

Esses dados mostram que podem estar ocorrendo dois fenômenos concomitantemente, e que são igualmente preocupantes: primeiro, pode haver vários médicos e estudantes de medicina com TDAH, mas que não são adequadamente avaliados e tratados; segundo, muitos podem estar usando estimulantes sem indicação médica (o chamado dopping cognitivo), podendo levar a efeitos adversos para a saúde.  

Desse modo, identificar corretamente o TDAH e saber das consequências associadas ao uso indiscriminado de psicoestimulantes é fundamental na comunidade médica.

O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH)

O diagnóstico de TDAH normalmente é feito com base nos critérios do DSM-5, a última edição do manual diagnóstico de transtornos psiquiátricos publicado pela Associação Americana de Psiquiatria. Ele é um transtorno relativamente frequente, presente em 5% das crianças e em cerca de 2,5% dos adultos. Quando presente, pode impactar profundamente na qualidade de vida de um indivíduo.  

Para se ter o diagnóstico, é preciso ter 6 ou mais sintomas de desatenção e/ou 6 ou mais sintomas de hiperatividade por no mínimo 6 meses, em pelo menos 2 ambientes diferentes (por exemplo: casa, escola, trabalho, com amigos ou outras atividades), uma clara interferência no funcionamento social, acadêmico ou profissional, e vários sintomas devem estar presentes antes dos 12 anos de idade. Os sintomas diagnósticos são esses:

Fonte: adaptado de Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5, 2014.

Diagnóstico da TDAH

No entanto, algumas observações para o diagnóstico devem ser ressaltadas:

  • É muito frequente que alguém que leia os critérios “inocentemente” se identifique com os exemplos descritos e conclua equivocadamente que tem o diagnóstico. Embora essa identificação possa, de fato, auxiliar a reconhecer o TDAH, somente um profissional habilitado conseguirá avaliar corretamente o quanto distante da normalidade esses sintomas se situam, ou o quanto se devem a um momento pontual da vida da pessoa, ou até decorrentes de outros problemas de saúde.
  • Várias outras condições psiquiátricas cursam com alterações da atenção e podem causar sintomas semelhantes à hiperatividade, sendo as principais os transtornos de humor e a ansiedade. Assim, como regra geral, quando um transtorno de humor e/ou ansiedade estão presentes, é necessário que primeiro se estabilize os sintomas dessas condições antes de se firmar o diagnóstico de TDAH. Esse é um ponto extremamente importante, pois muitas vezes o tratamento para TDAH pode piorar os sintomas de ansiedade e/ou transtorno de humor. O acompanhamento psiquiátrico nesses casos é fundamental.

Portanto, nada de fazer autodiagnóstico ou utilizar medicamentos sem avaliação de um médico! Trata-se de um diagnóstico complexo, com componentes biopsicossociais relevantes, e cujas consequências negativas de um tratamento não adequado não são desprezíveis. Mas por que, mesmo com esses dados, estudantes de medicina e médicos continuam a se autoprescrever psicoestimulantes?

O Dopping Cognitivo

Acontece que, assim como diversos atributos psicológicos, a atenção não é uma entidade categórica, que você "tem” ou "não tem"; pelo contrário, é um atributo dimensional, de modo que algumas pessoas têm menor ou maior capacidade de concentração. Assim, de uma maneira conceitual, o diagnóstico de TDAH nada mais é do que uma tentativa de identificação de indivíduos que estão na extremidade inferior desse espectro, cuja pouca capacidade de concentração interfere negativamente na sua rotina.  

O tratamento dessa condição, portanto, faz com que a pessoa com TDAH aumente sua capacidade de atenção para níveis considerados dentro da normalidade. Entretanto, qualquer pessoa que faça uso de estimulantes, mesmo que não tenha TDAH, terá, como consequência natural, o aumento da capacidade de concentração — ou seja, a concentração irá aumentar ainda mais. Esse é o chamado Dopping Cognitivo. É um assunto polêmico, cuja pergunta que devemos sempre fazer é: a que custo precisamos nos submeter a isso?

Riscos do Dopping Cognitivo

A primeira resposta (e mais óbvia) para essa pergunta consiste nos efeitos adversos das medicações que tratam TDAH, como metilfenidato ou anfetaminas. Algumas das consequências são os riscos cardiovasculares, de modo que pessoas com história de dor torácica, palpitações, síncope, infarto do miocárdio, arritmias, doenças valvares e hipertensão devem ser cuidadosamente avaliadas, podendo ser contraindicações essas medicações.  

Além disso, como mencionado anteriormente, diversas condições psiquiátricas podem piorar com essas medicações, incluindo ansiedade e transtornos de humor, podendo levar inclusive à psicose, com delírios e alucinações.  

Por fim, outra consequência importante devido ao mau uso dos medicamentos é o seu potencial aditivo. Vários estudos já demonstraram que, em indivíduos com diagnóstico firmado de TDAH, a prescrição de estimulantes não provoca Transtorno por Uso de Substâncias (TUS); entretanto, o uso não-prescrito ou prescrito incorretamente está significativamente associado ao desenvolvimento de adição a essas medicações.  

Não é sabida a real prevalência de TUS por estimulantes, mas estima-se que mais de 5% dos indivíduos com TUS é devido ao uso de estimulantes (mal) prescritos (SAMHSA, 2015 e 2016), e o uso abusivo desses medicamentos por indivíduos universitários pode chegar a 39% (Wilens et al., 2008).

Já a segunda resposta, sobre o custo do Dopping Cognitivo, é menos óbvia, mas talvez mais importante. Em um sentido estreito, parece fazer sentido que pessoas com alta demanda (médicos, estudantes de medicina) possam se beneficiar de aumento da concentração.  

Em um sentido mais amplo, contudo, esse potencial benefício parece ser apenas superficial. Em geral, ele mascara um estresse excessivo por pressões externas, uma autoexigência além do considerado razoável, sobrecarga de trabalho, percepção de que é preciso executar tudo em pouco tempo, medo de concorrência externa, entre outros fenômenos que ninguém gosta de falar.  

Faz sentido usar estimulantes para fingir que tudo isso não existe? Será esse o custo que você estará disposto a pagar? Não vale mais a pena investir na sua saúde, praticando exercícios físicos, fracionando suas demandas em atividades menores e factíveis, solicitando ajuda a um profissional que cuide da sua saúde mental? Parece um trabalho mais árduo, mas a alternativa é um profissional estressado, cansado…, mas um pouco mais concentrado.

Aproveite para ler também: Equilíbrio para a prova de Residência Médica: como cuidar da saúde mental?

E qual é a diferença entre TDAH e Dopping Cognitivo?

Em resumo, precisamos colocar o problema certo no lugar certo. O TDAH é uma condição relativamente comum, cujas consequências impactam drasticamente na vida de quem sofre com ela, e que necessita de um acompanhamento de perto de um profissional qualificado.  

O tratamento correto do TDAH tem o potencial de reorganizar a vida de um indivíduo que poderia passar o restante dos seus anos sem saber o que lhe acometia, sofrendo dificuldades consigo mesmo e com a sociedade. Em contrapartida, o dopping cognitivo não parece ser vantajoso — é apenas uma máscara de problemas mais profundos.  

Se você tem dúvidas se tem TDAH ou se haveria benefício de usar algum estimulante, procure a ajuda de um psiquiatra ou psicólogo de confiança — ele será seu aliado para saber lhe orientar nesse caminho.

Por Lucas Primo de Carvalho Alves

Médico formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e psiquiatra pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre. É doutor em psiquiatria pela UFRGS e pelo programa tripartite UFRGS/ USP/UNIFESP. Pós-doutor em psiquiatria pela UFRGS. É professor e coordenador do departamento de psiquiatria da UNISINOS, preceptor da residência médica em psiquiatria do HMIPV/UFCSPA, e professor de Saúde Coletiva da Afya/MEDCEL.

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REFERÊNCIAS

BARROS, Denise Borges. Os usos e sentidos do metilfenidato: experiências entre o tratamento e o aprimoramento da atenção. Tese (doutorado). UERJ: Rio de Janeiro, 2014.

FINGER, Guilherme; RODRIGUES DA SILVA, Emerson; FALAVIGNA, Asdrubal. Use of methylphenidate among medical students: a systematic review. Revista da Associação Médica Brasileira. v. 59, n. 3, 2013. p. 285-289.

NASÁRIO, B.; MATOS, M. Uso Não Prescrito de Metilfenidato e Desempenho Acadêmico de Estudantes de Medicina. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 42, 16 fev. 2022. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1982-3703003235853. Acesso em 04 mai. 2023.

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5. 5.ed. Porto Alegre: Artmed, 2014.

NATIONAL SURVEY ON DRUG USE AND HEALTH — NSDUH. Results from the 2016 National Survey on Drug Use and Health: Detailed Tables, [s. l.], 2016. Disponível em: https://www.samhsa.gov/data/sites/default/files/NSDUH-DetTabs-2016/NSDUH-DetTabs-2016.htm#tab1-51B. Acesso em 04 mai. 2023.

Shutterstock - Maxim Studios. Disponível em: https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/medicine-treatment-hiv-infection-hivaids-haart-1725872488. Acesso em 04 mai. 2023.

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5/5/23
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